sexta-feira, 12 de novembro de 2010

As vagas brasileiras na Libertadores e o Estatuto do Torcedor

Diante da esculhambação que se tornou a questão das vagas brasileiras na Copa Libertadores da América, não vi, até o presente momento, nenhum analista/comentarista de nossa comunicação social chamar a atenção para um detalhe de extrema importância: a possibilidade de haver uma afronta às normas previstas no Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei 10.671/2003, com as devidas alterações dadas pela Lei 12.299/2010).

Passemos a explicar a situação passo a passo, a fim de não perdemos o fio à meada.

O Campeonato Brasileiro da Série A, através de seu Regulamento Específico da Competição (http://www.cbf.com.br/regulamento/regulamento_sa2010.pdf), assegura aos clubes participantes 4 vagas na “Copa Libertadores de 2011”, conforme redação do art. 7º do referido regulamento:

Art. 7º – A classificação de clubes do campeonato para a Copa Libertadores de 2011 obedecerá aos critérios seguintes:
a) No caso da Copa Libertadores de 2010 ser conquistada por um clube brasileiro, estarão classificados os quatro primeiros colocados do campeonato, sendo que os 1º e 2º classificados acessarão a Copa Libertadores na sua 2ª Fase e os 3º e 4º classificados acessarão a Copa Libertadores na sua 1ª Fase (Fase Preliminar);
b) No caso da Copa Libertadores de 2010 não ser conquistada por um clube brasileiro, também estarão classificados os quatro primeiros colocados do campeonato, sendo que os três primeiros acessarão diretamente a 2ª Fase da Copa e o quarto classificado acessará a 1ª Fase da Copa (Fase Preliminar).

A composição do supracitado artigo dispensa maiores comentários, haja visto que é bastante claro o asseguramento de 4 vagas na “Copa Libertadores de 2011” aos participantes do Campeonato Brasileiro da Série A de 2010 (independentemente de o campeão da Copa Libertadores de 2010 ser um brasileiro – o que se verificou, ante a conquista da última Libertadores por parte do Internacional de Porto Alegre).

Acontece que a Conmebol, em inequívoca demonstração de desorganização e desrespeito ao torcedor, resolveu mudar as regras com o jogo em andamento.

Vamos aos fatos.

A Conmebol organiza, para além da Libertadores, um torneio denominado Copa Sul-Americana – o segundo torneio continental de clubes em ordem de importância (tal qual acontece na Europa com a Liga dos Campeões e a Liga Europa).

Entretanto, ao contrário da Europa, onde os torneios são respeitados e valorizados por aquilo que representam, na América do Sul, infelizmente, há uma necessidade se criar um “algo a mais” a fim de tornar uma competição mais valorizada e, por conseguinte, mais respeitada pelos próprios clubes participantes e os torcedores destas agremiações.

Este fenômeno pode ser verificado na Copa do Brasil, inspirado nas Copas nacionais da Europa. Contudo, ao contrário dos europeus, que valorizam as suas Copas pelo que representam e, consequentemente, não sentem necessidade de conceder vaga na principal competição interclubes do continente (Liga dos Campeões), a Copa do Brasil carece deste “algo a mais” para atrair os interesses de clubes, torcedores e, também, investidores (televisão, patrocinadores, etc.) – a tal vaga na Libertadores.

Sob este mesmo raciocínio, a Conmebol, com o intuito de estimular os clubes que disputam a Sul-Americana, passou a dar uma vaga na Libertadores ao seu campeão. É um inconteste reconhecimento do descrédito do segundo torneio continental, o qual não vale pelo que representa (competição de expressão continental), mas sim pelo acesso à Libertadores (este sim, o único certame continental a se ter em conta e estima).

Como não podia parar por aí em suas invenções, a Conmebol foi ainda mais adiante em tomadas de decisões controvertidas e de péssimo ajuizamento.

Em um primeiro momento, a entidade responsável pelo futebol sul-americano deliberou na direção de limitar o número de clubes brasileiros na Libertadores – apenas 5 clubes na edição 2011 da referida competição.

Como o Internacional foi o campeão da Libertadores de 2010 e o Santos o campeão da Copa do Brasil do mesmo ano, e, por isso, ambos já tinham vagas asseguradas na Libertadores de 2011, sobraram ao Brasil apenas mais 3 vagas.

Entretanto, o Campeonato Brasileiro da Série A, em seu regulamento, previa o apuramento de 4 clubes participantes à Libertadores de 2011.

Houve, como é evidente, um descontentamento entre os clubes brasileiros, prejudicados claramente pela decisão da Conmebol.

O que me causou certo espanto é que ninguém se lembrou do Estatuto do Torcedor, mais especificamente o seu art. 9º, §5º (que protege os regulamentos das competições). Sobre esse ponto eu falarei com maiores detalhes um pouco adiante.

Com o descontentamento por parte dos clubes nacionais, a CBF resolveu questionar a Conmebol a respeito de sua prejudicial decisão.

Eis que a entidade máxima do futebol sul-americano se saiu com uma belíssima determinação, a qual, de tão sensacional que é, apenas adia um eventual conflito. Senão, vejamos.

Ficou definido que o Brasil voltaria a ter 6 vagas na Libertadores de 2011. Teoricamente, portanto, voltam as 4 vagas do Campeonato Brasileiro.

Todavia, se um clube brasileiro for campeão da Sul-Americana e, consequentemente, garantir sua participação na Libertadores de 2011, o Brasil terá 3 clubes com acesso assegurado ao principal certamente continental, sobrando, então, apenas 3 vagas a serem preenchidas pelos participantes do Campeonato Brasileiro da Série A.

E é aí que poderá começar toda a confusão, embora eu não tenha visto nenhum jornalista esportivo mencionar o imbróglio que eventualmente se instalará.

Lembremos, novamente, que o regulamento do Campeonato Brasileiro prevê a classificação de 4 clubes participantes para a Copa Libertadores de 2011.

Uma eventual alteração do número de vagas para a Libertadores (no caso de uma agremiação brasileira se sagrar campeã da Sul-Americana) será um categórico descumprimento ao regulamento da competição e, desta forma, uma flagrante violação ao Estatuto do Torcedor.

A Lei Federal 10.671/2003 (com alterações dadas pela Lei 12.299/2010) veta expressamente o desrespeito às regras dos torneios nacionais. O que o Estatuto do Torcedor procura garantir é a moralização no futebol brasileiro, com o respeito aos regulamentos e ao torcedor (consumidor), que paga por um torneio e o mínimo que pode exigir é saber que as regras serão cumpridas.

Vejamos o que diz o texto da lei, ipsis litteris:

Art. 9o. É direito do torcedor que o regulamento, as tabelas da competição e o nome do Ouvidor da Competição sejam divulgados até 60 (sessenta) dias antes de seu início, na forma do § 1o do art. 5o. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010).
(...)
§ 5o É vedado proceder alterações no regulamento da competição desde sua divulgação definitiva, salvo nas hipóteses de (grifo nosso):
I - apresentação de novo calendário anual de eventos oficiais para o ano subseqüente, desde que aprovado pelo Conselho Nacional do Esporte – CNE;
II - após dois anos de vigência do mesmo regulamento, observado o procedimento de que trata este artigo.

Ora, se a lei é expressamente contrária a uma alteração no regulamento de uma competição salvo nas exceções elencadas (o que não é o caso em questão), é evidente que o mesmo raciocínio deve ser feito com relação ao cumprimento de um regulamento ao longo da competição.

A lei, de forma objetiva, visa a proteger o torcedor, equiparado a consumidor, de mudanças de humor ou decisões de gabinetes disparatadas por parte dos dirigentes desportivos, que se sentem os donos dos órgãos a que representam e se acham no direito de mudarem as regras como e quando bem entendem.

Pois é exatamente esse tipo de desmoralização, achincalhamento e abuso por parte dos dirigentes em relação ao torcedor, o verdadeiro mantenedor (enquanto consumidor) das competições, que a lei (Estatuto do Torcedor) se propõe a evitar.

Infelizmente, em termos desportivos pouco poderá ser feito para que essa situação seja reparada, uma vez que a FIFA veda terminantemente a clubes e federações que recorram ao Pode Judiciário a fim de dirimir dissídios que envolvam questões de competições futebolísticas.

Mais: a FIFA impede que toda e qualquer federação a ela filiada acate uma decisão Judicial que seja contrária às determinações dos órgãos desportivos competentes.

Uma afronta à Soberania de um Estado Democrático de Direito? Sim.

Um frontal agravo ao ‘Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional” (art. 5º, XXXV, CF/88)? Sim.

Isso, contudo, é assunto para um outro texto, mais complexo e de estudo mais aprofundado.

Portanto, se um clube que se sentir lesado com a eventual perda da vaga – Botafogo, Grêmio, Atlético-PR ou São Paulo (que brigam, no momento, pela tão almejada, porém agora incerta, “quarta vaga”) – não pode, por imposição das regras da FIFA (reitero), recorrer ao Poder Judiciário a fim de pleitear o que lhe é de Direito, o que é possível de ser feito?

Em primeiro lugar, caberia ao Ministério Público intervir como fiscal da lei que é e procurasse, dentro de suas prerrogativas constitucionais e legais, acionar a CBF a fim de que esta entidade fizesse cumprir o regulamento que ela mesma criou e, desta forma, respeitasse o Estatuto do Torcedor.

Além disso, todo e qualquer cidadão que se sentir lesado em seus direitos de torcedor (consumidor) poderá recorrer à Justiça em ação movida contra a CBF por descumprimento das normas legais vigentes.

E por torcedor, na interpretação do Estatuto do Torcedor, subentende-se não apenas aquele cidadão que foi a um jogo de futebol, mas também aqueles que, por exemplo, são sócios de um determinado clube de futebol ou mesmo que acompanham o Campeonato Brasileiro da Série A.

O art. 2º, parágrafo único da Lei 10.671/2003 vai adiante ao afirmar que: são presumidos o apoio a um clube ou acompanhamento de uma competição; ou seja, aquele que se assumir como torcedor não precisa provar que o é, mas sim o contrário, é preciso que provem que ele não é torcedor.

E o que isso implica?

Para além do torcedor de qualquer clube participante do Campeonato Brasileiro da Série A, qualquer cidadão que, de certa forma, tenha acompanhado (no sentido de ter consumido, em meu entendimento) este campeonato, poderá acionar a CBF judicialmente amparando o seu pleito indenizatório no Estatuto do Torcedor (por exemplo, alguém que, mesmo sem apoiar ou ser sócio de qualquer clube da Série A, tenha adquirido, nem que por uma rodada, o pacote de transmissão do campeonato denominado PFC).

Infelizmente, o torcedor que pleitear, judicialmente, a garantira da “quarta vaga” para o seu clube não logrará êxito, mesmo que a Corte Judicial brasileira reconheça o seu pedido, pois as normas da FIFA não aceitam a Soberania dos Estados, colocando-se, portanto, acima do Poder Judiciário.

No entanto, volto a afirmar, aquele cidadão que se sentir lesado ao entender que o descumprimento do regulamento da competição fere os seus direitos, ele poderá sim acionar a Justiça e pleitear indenização contra a entidade organizadora do campeonato, no caso, a CBF.

Aguardemos os próximos capítulos do nosso desorganizado futebol. Vejamos se algum brasileiro (Palmeiras ou Goiás) será campeão da Sul-Americana e, assim ocorrendo, se as leis brasileiras serão respeitadas (ou, pelo menos, se os torcedores [cidadãos] farão com que seus direitos sejam respeitados).

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