segunda-feira, 5 de julho de 2010

O INDIZÍVEL ENDEREÇO


Agora publico aqui um texto do meu avô, um de meus preferidos.

Publicado originalmente no livro "Terra Molhada", 1984. Livro que conta com prefácio de Gilberto Freyre.


O INDIZÍVEL ENDEREÇO

Waldimir Maia Leite (24/12/1925 - 30/06/2010)

Cadeira nº 38 da Academia Pernambucana de Letras

Lá embaixo, o inevitável das sombras, um bocado feito de inconsistentes nadas. Para o além das coisas, a silhueta do que não é, o imperfeito de não aconte(ser).

Vai assim o homem, sem prefácio, obra que jamais será entendida, os capítulos embaralhados, o final indeterminado de ser melancolicamente fim, término, encerrar.

Lembra, então, o homem o quadro de Rembrandt, que viu, certa tarde, no Museu Britânico, em Londres: “As três árvores”. Tela onde predomina mais o escuro. No homem (apenas uma árvore, não as três marcadas pelo pincel de Rembrandt) também prevalecem os escuros.

Vai indo, lentamente como um fechar de pálpebras, prelúdio de adorme(ser). Não sabe até onde vai. Não procurem o homem, ele ignora os próprios passos. Está dividido, uma dor (entretanto amiga e necessária) o acompanha, dia e noite.

O homem junta pedaços do que foi. Para reconstruir-se. Uns sobre outros, trechos de ter sido ligados pela argamassa do Tempo. Põe os olhos numa bandeja de porcelana, como duas uvas. E espera servi-las no festim dos deuses de barro.

A outra parte, distante e, entretanto, tão próxima, mergulhada dentro de águas circunstanciais. Os pés, desnudos, caminham (para onde?). Não sabe. Perdeu as coordenadas. Do homem nada resta: nem o silencia, escondido atrás de uma porta.

Vai indo o homem, cercado dos inevitáveis: isto e aquilo, este e esse, essa e aquela. A multidão de anônimos, seres que sofrem, em surdina, sem direito a protesto, a um grito que possa equivaler a desabafo.

Este instante, crescendo em turbilhão dentro do mar salgado, onde entre vagas flutua o homem. E os instantes anteriores, imprecisos, nostálgicos de terem sido. Lembranças. Apenas lembranças, nada de agoras, tépidos agoras como um ato de tomar uma mão na outra, em ato de construída ternura.

Para o depois, isto: o ser futuro, nascer. Quanto vale a eternidade? O ser eterno e contínuo talvez canse, ser sempre é uma forma de angústia de não acabar.

Para o antes, esta nua conclusão: ter sido e perder a forma primitiva, não ter podido evoluir. Ficar preso a amarras circunstanciais, sem libertar-se do acontecido.

O homem fica debruçado diante dos inevitáveis. Como quem está à janela, entretanto fechada. Olha para o adiante, cheio de incertezas, amargas incompletudes, sabor de fel.

Lentamente, como o fechar de pálpebras, ele interpreta os indícios da noite que se aproxima. Quer o segredo da semente que faz a gestação noturnal. Noite curta, como as de verão, emergente de acabar de ser tarde.

Vai assim o homem, sem prefácio, livro aberto em página onde pulsam as últimas lembranças gravadas em negrito, fortes como permanente saudade, intemporais. O livro marcado por uma folha de jasmim, página nº 112, como um indizível endereço para onde foi remetida mensagem de procura, de saber onde estaria, neste exato momento, o ser que se foi.

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