sábado, 29 de agosto de 2009
O bode expiatório e a fuga da realidade
A expressão “bode expiatório” tem sua origem nos tempos da Antiguidade, nas antigas tribos judaicas. O bode representava um papel simbólico nas cerimônias hebraicas do Yom Kippur, o Dia da Expiação.
O pobre animal era escolhido para concentrar em si todos os pecados do povo de Israel. Um sacerdote colocava as suas mãos na cabeça do coitado do bode e confessava para o infeliz animal todos os pecados da população de Israel. Posteriormente, o bode era solto na natureza selvagem a fim de que pagasse por todos os pecados cometidos pela gente de Israel. Por isso que se chama “bode expiatório” - expiação significa penitência, ou seja, castigo ou sofrimento de pena para se obter a remissão dos pecados.
Nos dias de hoje essa expressão ainda é utilizada em um sentido figurado. Sempre que se escolhe alguém como culpado por qualquer coisa negativa, mesmo que esse alguém não seja o culpado (ou o único culpado), estamos a fazer o mesmo que o povo das antigas tribos judaicas, quer dizer, escolhemos um “bode” a fim de que ele, sozinho e largado na “natureza selvagem”, pague por nossos erros ou nossas falhas (pecados).
A busca pelo “bode expiatório” é um mecanismo de defesa; um recurso para se apontar um responsável pelo(s) problema(s) e não assumir nossas próprias responsabilidades.
Para a Psicanálise o “bode expiatório” faz parte de um dos mecanismos de defesa da personalidade, a saber, a racionalização. Os mecanismos de defesa atuam de forma a que nós, seres humanos, não enfrentemos de frente todas as nossas frustrações e fracassos.
A racionalização seria um desses mecanismos de defesa e a eleição de um “bode expiatório” se encontra dentro de um dos recursos da racionalização. Jogar a culpa em alguém ou alguma coisa ao invés de assumirmos nossas responsabilidades não passa de um artifício para aliviarmos o nosso próprio sentimento de culpa e nos sentirmos melhores com nós mesmos e com os outros.
Dentre os mecanismos de defesa da personalidade podemos encontrar a projeção, que é “atribuir a outros as idéias e tendências que o sujeito não pode admitir como suas”, ou seja, jogar para cima de outra pessoa os nossos próprios defeitos.
Ao meu ver a ideia de “bode expiatório” tanto pode ser encontrada na racionalização como na projeção.
Dentro da Criminologia existe uma teoria que relaciona a ideia do “bode expiatório” com a necessidade da sociedade em ver o deliquente ser punido de forma exemplar.
Criminologia é uma ciência empírica e interdisciplinar que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle do comportamento delitivo. E como ciência interdisciplinar e pluridimensional que é, a Criminologia mantém uma relação de interesses de estudo com a Psicanálise, são as chamadas Teorias Psicanalíticas da Criminalidade.
Dentre estas teorias podemos encontrar uma que é bastante interessante e que me levou a refletir um pouco e, obviamente, a escrever esse texto. Trata-se das Teorias Psicanalíticas da Sociedade e a Interpretação Funcional da Reação Punitiva.
Para esta teoria, o Direito Penal não busca, objetivamente, a justiça ou a prevenção do crime. Na realidade, a pena tem uma função de satisfazer uma necessidade da “sociedade sancionadora” que “necessita” do castigo.
A sociedade não busca na pena a justiça ou a prevenção dos crimes; na realidade a sociedade tem uma necessidade inconsciente do castigo, de ver o deliquente ser castigado, para que este sirva de exemplo e pague não só pelos seus erros, mas pelos desejos reprimidos de toda a sociedade.
É a ideia do “bode expiatório”. O deliquente, na verdade, é o alvo de todas as frustrações e agressividade da coletividade, que se identifica com ele e projeta sobre o mesmo a necessidade de castigo.
Tal como o pobre do bode, que leva consigo para o deserto todos os pecados do povo de Israel, a pena infligida ao criminoso tem um caráter coletivo e não individual (como é colocado pelo Direito Penal vigente). Na realidade a pena não serve para reeducar o indivíduo a fim de recolocá-lo no convívio social; o castigo imposto ao deliquente é o exemplo visível que a sociedade impõe ao “bode expiatório”, para que sirva de controle aos impulsos criminosos de todas as pessoas, uma vez que a própria sociedade se identifica com o criminoso.
Na prática do Direito Penal dogmático essa teoria esbarra, dentre outras coisas, com a Culpabilidade, que é um dos elementos constitutivos do crime.
Na Teoria do Crime, a Culpabilidade é o único dos três elementos (que integra e forma o crime) que versa sobre a pessoa humana. A culpabilidade é um juízo de reprovação pessoal – o desvalor da culpabilidade reprova o autor de um fato típico e antijurídico, por não haver se comportado conforme o direito ou não tendo se decidido pelo direito, quando podia se comportar conforme o direito ou podia ter decidido pelo direito.
Em resumo: a culpabilidade é um juízo negativo, de reprovação pessoal, ao autor do fato que poderia ter agido de acordo com as normas, mas, de forma consciente e livre, agiu contra as normas.
Isso bate de frente com a ideia de que a sociedade se projeta no criminoso, identificando-se com ele e que a pena é um mecanismo de repressão dos impulsos criminosos de todos os membros da coletividade.
Apesar disso, embora não vejamos aplicação prática dessa teoria psicanalítica no Direito Penal, não posso deixar de observar que, em termos de sociedade e comportamento humano, a teoria do “bode expiatório” é bastante interessante e, indubitavelmente, facilmente verificável através do convívio social.
Quem nunca conheceu ou conviveu com alguém que se recusa a assumir os seus próprios defeitos ou reconhecer as suas falhas?
Quem não conhece alguém que é excelente a apontar os erros e defeitos dos outros, mas é incapaz de se olhar no espelho e fazer uma autocrítica?
Quem não conhece pelo menos uma pessoa que coloca a culpa de tudo nos outros, que aponta o dedo com uma veemência voraz, mas que, quando confrontada com suas deficiências, reage de forma agressiva e não aceita uma análise negativa a respeito de seus atos?
Quem não conhece alguém que adora julgar e condenar as atitudes alheias?
Certa vez, uma amiga me disse – “Emanuel, essa pessoa que tanto critica os outros, que acusa e aponta o dedo às atitudes de todos, na verdade tem uma vontade tremenda de fazer tudo isso que ela critica, mas não tem coragem”.
Lá está. Essa minha amiga descreveu com perfeição a teoria do “bode expiatório” - apontar para os outros a culpa ou jogar para os outros os defeitos que não suporta admitir como seus.
Pois é, aí entra o “bode expiatório”... Apontamos para os outros a culpa dos nossos próprios desejos reprimidos que, quando refletidos nos outros, nos incomoda de uma forma que é necessário que o OUTRO pague pelos meus pecados/erros, a fim de que eu me sinta aliviado e possa conviver comigo mesmo de forma tranquila e serena.
Somos todos humanos e todos nós somos passíveis a erros e defeitos. Todos nós agimos inconscientemente em defesa de nossa personalidade. Por isso que devemos estar sempre atentos às nossas ações e devemos procurar nunca julgar os outros sem antes fazermos uma autocrítica e termos personalidade forte o suficiente para assumirmos nossos erros e defeitos, sem ter que recorrer a “bodes expiatórios” para fugir da realidade.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
gostei do texto, principalmente pela integração da Psicanálise com
uma das áreas do Direito,parabens.
Obrigado pelo comentário elogioso.
Postar um comentário