Tenho acompanhado com certo ceticismo todo o imbróglio em torno das negociações dos direitos televisivos do Campeonato Brasileiro de Futebol.
Ceticismo porque vejo o futebol brasileiro a perder uma grande oportunidade de rever o modelo de divisão das cotas televisivas. Este era o momento ideal para que torcedores, jornalistas, dirigentes e até mesmo as autoridades públicas nacionais, começassem a discutir um novo formato para a divisão das cotas de televisão, algo que fosse mais justo e que respeitasse o Princípio da Igualdade.
Mas, infelizmente, salvo jornalistas como Leonardo Bertozzi e Erich Beting, pouco li e ouvi neste sentido.
O Ministro dos Esportes, inclusive, quando se pronunciou sobre o tema, limitou-se a dizer que esperava ver uma rápida solução para a confusão, a fim de que os clubes não saíssem prejudicados pela “crise”. E foi assim, de forma vazia e superficial que o ministro abordou o assunto.
Sobre isto falarei um pouco mais adiante, mas recordo que a este respeito já publiquei neste mesmo blog um artigo no qual resumia dois trabalhos meus – minha monografia no curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, cujo título foi “A divisão das cotas de televisão do campeonato brasileiro de futebol à luz do princípio da igualdade” e um artigo científico publicado no IV Salesius, evento organizado pela Fasne, “A cotas de televisão do campeonato brasileiro e o ‘apartheid futebolístico’” – texto que pode ser lido em
http://emanuel-junior.blogspot.com/2009/05/as-cotas-de-tv-do-brasileirao-e-o.html.
Em meio a toda essa confusão, dois outros temas entraram em debate, sobre os quais gostaria de, também, tecer alguns comentários, são eles: a negociação individual dos direitos de transmissão e a incansável (e insuportável) tentativa de voltar com a fórmula de disputa conhecida por “mata-mata”. Curiosamente, estes dois pontos são regulamentados em lei e, mesmo assim, há quem insista em discuti-los ao arrepio das normas legais.
Dividirei a análise em três pontos: 1. Divisão das cotas televisivas e o Princípio da Igualdade; 2. Negociação individual dos direitos de transmissão – direito de arena e Cade; 3. Pontos corridos vs. Mata-mata à luz do Estatuto do Torcedor.
1. Divisão das cotas televisivas e o Princípio da Igualdade
O responsável pelas negociações dos direitos de transmissão do campeonato brasileiro, como sabemos, é o Clube dos Treze. Bem como é o Clube dos Treze que divide e distribui os recursos provenientes dessas negociações.
Ao repartir os recursos entre os clubes participantes do campeonato brasileiro, o Clube dos Treze age sem critérios de equidade, priorizando os seus associados em detrimento das demais associações esportivas, as quais não fazem parte de seu seleto grupo.
Em 2011, último ano de vigência do atual contrato (a confusão atual reside justamente nas negociações para o triênio 2012/2013/2014), a divisão das cotas (seguindo-se o que se verificou em 2009 e 2010) deverá ser algo como:
Grupo I: R$21 milhões – São Paulo, Flamengo, Corinthians, Palmeiras e Vasco.
Grupo II: R$18 milhões – Santos.
Grupo III: R$15 milhões – Atlético-MG, Cruzeiro, Internacional, Grêmio, Botafogo e Fluminense.
Grupo IV: R$11 milhões – Atlético-PR, Bahia, Coritiba.
Grupo V: R$5,5 milhões - Goiás, Sport, Vitória, Guarani, Portuguesa*.
Grupo VI: “Convidados” - Avaí, Atlético-GO, Ceará, Figueirense, América-MG.**
*Geralmente, um associado do Clube dos Treze que disputa a Série B recebe em torno de 50% do valor a que teria direito se estivesse na Série A. Por isso, Goiás, Sport, Vitória, Guarani e Portuguesa deverão receber algo aproximado a R$5,5milhões (talvez Sport e Portuguesa ganhem um pouco menos, por estarem há mais de um ano consecutivo na Série B).
**Uso o termo “convidados” pois foi assim que o Clube dos Treze se referiu, certa vez, aos clube que não são membros da referida entidade – isso ocorreu em 2009. Nesta altura, ficou definido que os “convidados” negociariam diretamente com a entidade os valores de suas cotas, ou seja, Avaí, Atlético-GO, Ceará, Figueirense e América-MG têm que negociar com o Clube dos Treze para chegarem a um acordo quanto ao valor a ser pago pelos seus direitos de transmissão. Esses valores nunca chegaram perto dos R$11 milhões, que é a menor quantia paga a um membro do Clube dos Treze.
Com base nestes dados, podemos questionar:
É justo um clube da Série B ser contemplado com recursos referentes aos direitos de transmissão do campeonato da Série A?
Como é possível um clube obter recursos que dizem respeito aos direitos de outros clubes?
Qual é a justificativa para um clube que não disputa a Série A do campeonato brasileiro perceber valor superior a clubes que dele participam?
Lembremos que o Clube dos Treze quando vende o “pacote de transmissão do campeonato brasileiro”, não negocia apenas os direitos de transmissão de seus associados, mas de todos os clubes participantes da Série A do Brasileiro.
Foi diante deste quadro (de claro e inequívoco privilégio aos associados do Clube dos Treze) que cheguei à conclusão: a forma como a divisão das cotas televisas é feita fere diretamente a democracia, uma vez que se cria um seleto e pequeno grupo de clubes privilegiados. Um apartheid que divide clubes “grandes” de “pequenos”, contribuindo para o engessamento da mobilidade entre os clubes, com a tendência de os “grandes” se tornarem sempre maiores e os “pequenos” se tornarem, gradativamente, menores; ficando condenados à marginalidade do futebol nacional. É o fosso intransponível que separa os “incluídos” dos “excluídos”.
Ao concentrar o poder nas mãos de poucos clubes (“apartheid futebolístico”), agride-se diretamente o princípio da igualdade, pois cria distinções e discriminações absurdas, sem fundamento ou justificativas.
Em consequência à agressão ao princípio da igualdade, macula-se o elemento essencial de uma competição esportiva: a competitividade entre os adversários.
Com isto, fere-se o Estatuto do Torcedor (Lei 10671/2003), o qual, em defesa e proteção do torcedor, busca a competitividade através da imposição de critérios técnicos, como, por exemplo, é previsto no art. 10, §1º.
Infelizmente, esse assunto não tem sido discutido de forma aprofundada e não se vê qualquer movimentação no sentido de se buscar uma divisão das cotas mais equânime e justa.
Pelo contrário, o que se vê são clubes, através de seus dirigentes, demonstrando claramente a preocupação em ganharem cada vez mais, sem se importarem com o coletivo e com a busca pela competitividade sadia e justa.
O presidente do Atlético-MG, inclusive, deu uma demonstração clara de como o seu pensamento se volta para o seleto grupo de clubes em detrimento de todos os outros, ao afirmar que há clubes como “Goiás, Vitória e Bahia” que precisam do dinheiro da televisão, referindo-se apenas aos associados do Clube dos Treze como se o futebol brasileiro se limitasse e se restringisse aos vinte clubes associados àquela entidade.
Esquece-se o presidente do Atlético-MG, bem como, aparentemente, esquecem-se todos aqueles que abordam este tema dos cinco clubes da Série A 2011 que não gozam dos mesmos privilégios e regalias daqueles que são associados ao Clube dos Treze, no caso Avaí, Atlético-GO, Ceará, Figueirense e América-MG.
Isso para não falar de tantos outros clubes de grandes e apaixonadas torcidas como, por exemplo, Náutico, Santa Cruz, Paysandu, Remo, Fortaleza, Ponte Preta, Vila Nova-GO, que convivem há anos com a exclusão e, por conta disso sofrem enormes dificuldades financeiras. Especificamente poderia citar o Santa Cruz, clube com uma massa adepta apaixonada, que, mesmo na Série D, tem obtido das melhores médias de público do futebol nacional – em todas as divisões.
É por isso que me refiro ao “apartheid futebolístico”, aos clubes que se encontram verdadeiramente “excluídos” e marginalizados dos mais importantes debates do futebol nacional.
São tão “excluídos” que praticamente ninguém se lembra deles quando se discute o assunto das negociações dos direitos de transmissão.
Nem mesmo o Ministro dos Esportes, que, por incrível que possa parecer, é membro de um partido que, na teoria, deveria se preocupar com a causa dos excluídos e oprimidos – afinal, para que raios existe o “comunista” na sigla do partido?
Na Itália, desde 1999 os clubes eram livres para negociar os direitos de televisão individualmente (da mesma forma como é na Espanha). Preocupado com o desequilíbrio orçamentário entre os clubes da Serie A, o Ministério do Esporte italiano determinou que as cotas de televisão voltassem a ser negociadas coletivamente.
Em janeiro de 2007, a autoridade antitruste da Itália recomendou, em um relatório de 170 páginas, que o sistema de negociação coletiva fosse utilizado novamente para garantir mais competitividade.
Foi necessária uma intervenção estatal, via Ministério do Esporte, para que se procurasse um modelo de negociação coletiva com regras estabelecidas para uma divisão mais equânime destes recursos, que passará a ser da seguinte forma:
1. 40%: dividido igualmente entre todos.
2. 30%: de acordo com o desempenho no campeonato anterior (mérito desportivo).
3. 30%: baseado no tamanho da torcida.
Na Premier League (Inglaterra), liga de futebol de maior faturamento no Mundo, a negociação é coletiva e a divisão também é dividida em três partes:
1. 56% divididos igualitariamente entre todos os clubes.
2. 22% baseados na classificação final da temporada anterior.
3. 22% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão.
Esse modelo permitiu, por exemplo, que o Manchester United, campeão em 2008/09, tenha recebido 66 milhões de euros, enquanto que o Middlesbrough, penúltimo colocado, tenha encaixado 40 milhões (praticamente o mesmo valor que receberam os espanhóis Valencia e Atlético de Madrid).
Na Alemanha a negociação já é coletiva e a divisão é feita de modo quase que de igualdade absoluta. Fato que gera críticas por parte do todo poderoso Bayern de Munique, que se sente prejudicado diante de seus adversários europeus na Champions League.
Para termos uma noção da competitividade na Bundesliga basta olharmos para a tabela classificativa: há dez rodadas do fim do campeonato alemão, os seis últimos classificados são, todos, clubes que já foram campeões alemães pelo menos uma vez. O Wolfsburg, campeão em 2009, é o 14º (de 18 clubes); Werder Bremen, quatro vezes campeão (a última vez em 2004), é o 15º; Kaiserslautern, quatro vezes campeão (último título em 1998), é o 16º (antepenúltimo); Stuttgart, cinco vezes campeão (a última vez em 2007), é o 17º (penúltimo); e Borussia Mönchengladbach, cinco vezes campeão, dominador na década de 70 (seus cinco títulos foram naquela década, altura em que também conquistou duas Copas UEFA), é o 18º colocado, ou seja, o lanterna.
Já imaginaram tantos clubes campeões brasileiros juntos (e em uma mesma edição!) nas últimas colocações do “Brasileirão”? Impossível de se imaginar tal cenário, já que todos os campeões são membros do Clube dos Treze e, por isso, gozam dos já referidos privilégios.
Portanto, como se percebe pelos exemplos dados, negociação coletiva e divisão justa, que respeite a Isonomia, não são nada de outro mundo. São realidades constatáveis nas três ligas de maiores faturamentos do futebol europeu.
Com fulcro nos modelos citados das três maiores ligas europeias, é viável sugerir um critério a ser adotado no Brasil. Em minha opinião, a divisão poderia ser em três partes (tal qual a Premier League e a Serie A), da seguinte forma:
- 50% divididos equitativamente entre os 20 clubes da Série A do campeonato brasileiro.
- 30% divididos de acordo com a classificação no campeonato anterior.
- 20% divididos com base na média percentual de ocupação do estádio.
Conferir-se-ia, deste modo, máxima efetividade às normas constitucionais, respeitando-se um dos mais essenciais princípios/valores democráticos: a igualdade.
Posto isto, volto a questionar: por qual motivo não se discute essa questão no Brasil?
Acredito, honestamente, que este seja o momento ideal para iniciarmos este debate tão importante, que poderá representar uma verdadeira e profunda mudança no futebol brasileiro.
2. Negociação individual dos direitos de transmissão – direito de arena e Cade
Esse ponto traz à tona três questões importantes: a) o direito de arena (Lei Pelé) veda a negociação individual dos direitos de transmissão; b) a concorrência leal e a determinação do Cade; c) a perda da competitividade entre os clubes.
a) Direito de Arena:
Vamos ao texto da lei.
Artigo 42 da Lei 9615/98 (Lei Pelé) – “Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem”.
O parágrafo 1º do referido artigo aprofunda ainda mais a questão – “Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total da autorização, como mínimo, será distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo ou evento”.
O entendimento, até hoje pacífico, sobre o Direito de Arena é que, em um jogo de futebol, por exemplo, para que haja a sua transmissão é necessário a anuência dos dois clubes envolvidos.
E este é o entendimento lógico e racional. Afinal, se os clubes devem aos jogadores (que participem da partida) 20% do preço pago pelo jogo, é evidente que é necessário que os dois clubes sejam pagos pela transmissão do jogo.
Imaginemos um jogo entre o clube X e o clube Y. O clube X teria vendido os direitos de transmissão individualmente para a empresa de televisão fictícia Platinada. Assim, quando o jogo fosse de mando de X, apenas X receberia (seria pago) pela transmissão do jogo X vs. Y. Acontece que Y é obrigado por lei (§1º, art. 42, Lei Pelé) a pagar 20% do preço do jogo aos seus jogadores, uma vez que o TST já decidiu que os jogadores que participem do jogo têm o direito a receber tal percentual. Como é que Y iria pagar seus jogadores e, assim, cumprir a lei, se nada recebesse pela transmissão daquele jogo, uma vez que X negociara individualmente os direitos de transmissão de seus jogos?
É por isso que no Brasil os direitos de transmissão são negociados coletivamente. Visa a evitar conflitos deste gênero.
Portanto, a não ser que se mude o entendimento que existe até hoje a respeito do Direito de Arena, o que seria um absurdo (em minha opinião), é vedado por lei que cada clube negocie individualmente seus direitos de transmissão.
b) Concorrência Leal e o Cade:
No ano passado, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) decidiu, em processo que corria desde 1997, pelo fim do direito de preferência que a Rede Globo teria junto ao Clube dos Treze nas negociações dos direitos de transmissão do Brasileirão de 2012 a 2014.
O presidente do Cade, Fernando Furlan, já veio a público afirmar que uma eventual negociação individual entre clubes e qualquer empresa de televisão será alvo de um processo especial por parte do órgão.
Este posicionamento do Cade é natural. Diria até mais, deve ser exigível ao órgão controlador da concorrência leal que aja desta forma, uma vez que qualquer negociação individual dos direitos de transmissão seria uma verdadeira fraude à decisão proferida no ano passado por este órgão.
O descumprimento do acordo feito no ano passado tem que ser fortemente reprimido pelo Cade, afinal é a credibilidade do órgão que será posta em causa.
c) Competitividade do campeonato brasileiro:
Quando abordei a questão da divisão das cotas, mais acima, demonstrei que as negociações individuais no futebol italiano foram alvo de intervenção por parte do Ministério do Esporte italiano, após recomendação da autoridade antitruste local no sentido de que o sistema de negociação coletiva fosse utilizado novamente para garantir mais competitividade à Serie A italiana.
As autoridades italianas constataram que a negociação individual prejudicava a competitividade do campeonato nacional local, na medida em que clubes como Juventus, Milan e Inter de Milão concentravam entre si a maior parte dos recursos financeiros pagos pelos direitos de transmissão.
Tal discussão começa a ganhar voz na Espanha. Em novembro publiquei o texto “Futebol: direitos televisivos e a distribuição destes recursos...” (
http://emanuel-junior.blogspot.com/2010/11/futebol-direitos-televisivos-e.html) e nele analiso a questão espanhola a partir de um artigo do jornalista Santiago Segurola, diretor adjunto do jornal desportivo espanhol Marca e que escreve no Diário de Notícias (Portugal) sobre a Liga Espanhola de futebol, no qual ele demonstra enorme preocupação com a forma como são tratados os direitos televisivos na Espanha, o que fica claro pelo título de seu artigo – “Liga espanhola está condenada à destruição”.
Na Espanha as negociações são individuais, ou seja, cada clube negocia sozinho os seus direitos de transmissão. Lá não existe uma previsão legal como o nosso Direito de Arena (Lei Pelé), então é legalmente possível a negociação individual.
Mas, são exatamente essas negociações individuais que preocupam Santiago Segurola, na medida em que o jornalista espanhol demonstra atenção e cuidado para algo tão importante no desporto, mas que, nestes dias de futebol-negócio, ficou um pouco esquecida – a competitividade.
Real Madrid e Barcelona, segundo Santiago Segurola, cobram 120 milhões de euros pelos seus contratos com a empresa Mediapro. O terceiro colocado neste ranking é o Valencia, que recebe 44 milhões de euros – isso mesmo, praticamente 3 vezes menos que a dupla de ferro. Logo em seguida vem o Atlético de Madrid, com 42 milhões de euros. Clubes tradicionais como Athletic Bilbao e Sevilha recebem cerca de 20 milhões de euros – ou seja, 6 vezes menos que os dois principais clubes do país. Estes contratos durarão até 2015.
Não por acaso, nos últimos 15 anos, apenas em 4 ocasiões o campeão espanhol não foi Real Madrid ou Barcelona – Atlético de Madrid (1995/96), Deportivo La Coruña (1999/2000), Valencia (2001/02, 2003/04).
Nos últimos seis campeonatos, o título ficou dividido entre Barcelona (4 vezes) e Real Madrid (2). Neste mesmo período, apenas uma vez a dupla de ferro não ficou com as duas primeiras colocações – foi em 2007/08, com o Villareal sendo vice-campeão, perdendo o título para o Real Madrid; o Barcelona ficou em 3º.
Em 2009/10, o Barcelona foi campeão com 99 pontos dos 114 disputados; ficou 3 pontos à frente do Real Madrid, com 96. Pode-se dizer que as duas vitórias no confronto direto foi determinante para o título blaugrana.
Na atual temporada, assiste-se a mais uma disputa bipolarizada entre Real Madrid e Barcelona pelo título, ambos disparando nos dois primeiros lugares da competição, relegando aos demais clubes a briga pelas 3ª e 4ª colocações, que concedem vagas na Champions League.
Não restam dúvidas de que isso é fruto da imensa desigualdade na negociação dos direitos televisivos.
Façamos de conta que no Brasil não houvesse o Direito de Arena e, portanto, fosse legalmente possível a negociação individual, ou que não houvesse o acordo com o Cade. Mesmo nessa situação hipotética, por qual motivo importaríamos este modelo que, tanto na Itália, quanto na Espanha já se mostrou desigual e injusto, acabando ainda mais com a competitividade dos campeonatos nacionais?
Foge totalmente ao bom senso. Negociações individuais dos direitos de transmissão seria um retrocesso ainda maior para o futebol brasileiro. Pois, se com as negociações coletivas e a desigual divisão das cotas atuais já nos encontramos em uma situação de “apartheid futebolístico”, como ficaria o cenário se Corinthians e Flamengo pudessem negociar sozinhos seus direitos e deixassem Avaí, Ceará, Atlético-GO, América-MG e Figueirense com o pires na mão quase que mendigando migalhas das empresas de televisão?
Volto ao que já foi dito no ponto 1 do presente texto. O que devemos debater no Brasil é a busca por um modelo mais justo, que respeite o princípio da igualdade e traga consigo a maior possibilidade de termos um torneio verdadeiramente competitivo.
3. Pontos corridos vs. Mata-mata à luz do Estatuto do Torcedor
Naquela altura escrevi sobre o tema, pois os que são favoráveis ao “mata-mata” aproveitaram toda a confusão em torno do “entrega jogo / não entrega jogo” no final do Brasileiro 2010 para tentarem discutir um eventual retorno do sistema de “mata-mata” ao campeonato brasileiro.
Em minha análise, antes de entrar na questão legal, Estatuto do Torcedor, fiz uma abordagem aos modelos desportivos, a fim de demonstrar que há toda uma lógica que dá sustentação ao modelo desportivo brasileiro e que, por essa lógica, o natural é que o campeonato brasileiro seja disputado em formato de pontos corridos.
Falo em lógica de modelo desportivo porque o futebol no Brasil adota um modelo que em todas as características é semelhante ao modelo da Europa, estando, portanto, distanciado do modelo dos EUA (que é o parâmetro utilizado quando se fala em mata-mata).
Explicada essa questão, passemos, então ao ponto do Estatuto do Torcedor.
O Estatuto do Torcedor, Lei Federal 10.671/2003 (com alterações dadas pela Lei 12.299/2010), tem por escopo a moralização do futebol brasileiro, visando à proteção do torcedor enquanto cidadão e consumidor – garantias de respeito aos regulamentos (objetivos desportivos); segurança e comodidade nas praças desportivas; etc..
Anteriormente, referenciamos que o modelo brasileiro segue o europeu no quesito da relação com o poder público. E isso significa dizer que o poder público intervém na ordem jurídico-desportiva a fim de garantir a organização do desporto.
Pois bem, estamos diante de um exemplo inequívoco de ingerência do poder público no desporto nacional. O nosso Legislativo percebeu a necessidade de intervir no desporto nacional em questões como os regulamentos das competições e a segurança dos torcedores - e Estatuto do Torcedor é fruto desta intervenção do poder público. Intervenção necessária e muito bem vinda, diga-se de passagem.
Acontece, entretanto, que em muitas discussões sobre futebol vemos o completo esquecimento da lei que “estabelece normas de proteção e defesa do torcedor” (art, 1º do referido Estatuto).
Infelizmente, neste debate entre “pontos corridos e mata-mata” a situação não é diferente. As pessoas insistem em discutir o assunto sem sequer mencionarem a existência de tal previsão legal.
Mantenho, contudo, a minha insistência de respeitar a lei, até por considerar que o torcedor deve ter noção dos seus direitos e deveria buscar sempre os meios necessários a fim de reivindicá-los.
Se querem discutir uma nova mudança na fórmula de disputa, os defensores do retorno aos “mata-mata” têm que se articular para o Estatuto do Torcedor sofra uma nova alteração, a fim de que se flexibilize esse ponto na lei.
Vejamos o que diz o texto da lei, ipsis litteris:
"Art. 8º. As competições de atletas profissionais de que participem entidades integrantes da organização desportiva do País deverão ser promovidas de acordo com calendário anual de eventos oficiais que:
(...)
II – adote, em pelo menos uma competição de âmbito nacional, sistema de disputa em que as equipes participantes conheçam, previamente ao seu início, a quantidade de partidas que disputarão, bem como seus adversários".
Embora a lei não fale diretamente que a fórmula de disputa deve ser de “pontos corridos”, esse entendimento é de fácil elucidação, bastando para tal uma interpretação simples da imposição legal. O inciso II do art. 8º da lei fala em:
1. Competição nacional.
2. Sistema de disputa em que as equipes participantes saibam previamente:
a) Quantidade de partidas que disputarão.
b) Os seus adversários.
Ora, em qual sistema de disputa é possível aos clubes saberem previamente quantas partidas realizarão e quais serão todos os seus adversários?
I
sto seria possível em um sistema de disputa de “mata-mata”? Evidente que não.
Em uma Copa do Brasil, por exemplo, um clube sabe que poderá disputar de X a Y partidas; e que poderá enfrentar o adversário A, B, C, G, H ou I, a depender dos resultados.
Nos campeonatos brasileiros que eram disputados no sistema de “mata-mata”, um clube começava a competição sabendo que disputaria X partidas, mas que esse número poderia ser maior se se classificasse para a fase seguinte (ou, eventualmente, houvesse alguma repescagem ou coisa do gênero, como já ocorreu em alguns regulamentos). Contudo, jamais poderia prever quais seriam os adversários nas fases de “mata-mata” ou mesmo precisar o número de jogos a disputar ao longo da competição.
Apenas um campeonato de “pontos corridos” permite a todos os clubes participantes saber, previamente, quantos jogos disputarão e quais serão os seus adversários.
Qual o sistema que dá aos clubes uma maior possibilidade de planejamento (tanto desportivo quanto a nível financeiro – vendas de lugares anuais, promoções de marketing, etc.), o de “pontos corridos” ou de “mata-mata”?
A resposta é óbvia: “pontos corridos”.
Foi neste sentido, acredito, que o legisladores pátrios procuraram orientar e organizar o nosso ordenamento jurídico-desportivo: garantir a todos os clubes uma maior estabilidade e segurança, ao passo que lhes concedem garantias prévias de planejamento, a fim de obterem, através de competência na gestão desportiva, os maiores proveitos desportivos e financeiros.
É aí se encontra o mais forte argumento que me faz ser favorável aos “pontos corridos”, a primazia ao planejamento e à organização dos clubes.
Conclui-se, portanto, que para retornar ao sistema de “mata-mata” é necessária uma alteração no Estatuto do Torcedor, tornando, portando, toda a discussão atual inócua se não se atentar, antes de tudo, a esta limitação legal.
Além da questão legal, é preciso lembrar que o sistema de disputa de “pontos corridos” está em concordância com toda a lógica da organização jurídico-desportiva nacional, que adota em todas as esferas desportivas, futebol incluído, o modelo desportivo europeu, no qual se preponderam os resultados desportivos e um sistema mais democrático em que se prima pela mobilidade hierárquica dos clubes em detrimento de um sistema elitista, que prioriza o poder financeiro em detrimento dos resultados e das conquistas desportivas.
Então, é preciso ter em mente que os “pontos corridos” não são uma mera imposição legal.
É necessário, sempre, compreender que a lei (Estatuto do Torcedor) existe dentro de uma lógica – os “pontos corridos” são a consequência natural de um modelo desportivo adotado nacionalmente. É a racionalidade e a lógica acima do contrassenso.