Em
“A Rosa Púrpura do Cairo” Woody Allen busca discutir o cinema e a sua relação
com o espectador; abordando o modo como o cinema, ao reproduzir (de forma
fantasiosa) a realidade, ilude o espectador e leva ao seu público o
entretenimento através da “magia” e da fantasia.
Woody
Allen levanta, em certas passagens do filme, a dicotomia: realidade x ficção. O
cinema é a representação do real; o cinema recorre à ficção para criar um mundo
“novo”, que representa, de seu modo, a realidade; porém, o cinema não é a
realidade.
Além
disso, Woody Allen trabalha magistralmente o tema da indústria cultural. O
cinema, como manifestação artística que é, encontra-se inserido dentro da
grande indústria do entretenimento e, portanto, é parte da indústria cultural.
Nota-se
o tom crítico do autor em relação à indústria cultural em diversas cenas do
filme. Por exemplo, quando os personagens do filme, “presos” na tela, discutem
quem tem o papel mais importante, sendo que a perspectiva, na discussão, gira
em torno do consumo, na medida em que os personagens medem suas importâncias
sob o ponto de vista meramente comercial – quem venderia mais ingressos, ou
seja, quem daria mais lucro à indústria cultural.
Há
outra cena em que a crítica de Allen à engrenagem da indústria cultural fica
bastante evidente. É quando os responsáveis pelo filme, representando os
proprietários dos estúdios em seus anseios, afirmam que a opinião dos
jornalistas seria favorável a eles e deixam claro que compraram esse
posicionamento amistoso dos jornalistas, pois dizem que custou caro, mas que
conseguiram ter os jornalistas ao seu lado.
Nesta
cena, fica subentendido que os jornalistas não fariam críticas contundentes à
situação e, portanto, não haveria grande contestação ou cobrança em relação ao
fato inusitado da fuga de um dos personagens, que estava “foragido” na vida
real. A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt define esta situação como homogeneização
da opinião pública, enquanto Noam Chomsky, no mesmo sentido, fala em “consentimento
manufaturado. Woody Allen, portanto, na cena em questão, demonstra claramente
como é possível se criar um consentimento em torno de um tema, possibilitando
que a opinião generalizada seja homogênea, igual e favorável aos interesses
daqueles que detêm o poder econômico e influência na esfera da comunicação
social.
Tom,
o “foragido”, é um personagem que representa alguém que é aventureiro,
explorador, pesquisador (é um arqueólogo), mas, ao mesmo tempo, é também uma
figura romântica, poética e, por isso, bastante encantadora.
Viver
no mundo real, para Tom, seria inviável e insustentável. Tom é um personagem e,
portanto, é condicionado em suas ações pela pré-definição de seu personagem. Ele
age, em determinadas situações, de forma condicionada, quase que automatizada.
É como se fosse um animal agindo por instinto, ou seja, sem a capacidade
racional que diferencia os homens – poder escolher, agir por conta própria,
tomar suas próprias decisões.
Inclusive,
há uma cena em que um dos personagens, “preso” na tela, diz a Cecília que ela
tem que se decidir – entre Tom e Gil – e afirma que poder escolher é uma das
grandes virtudes do Homem. Isto é racionalidade. Isto é que nos permite viver
em sociedade. E esta era a grande lacuna de Tom, um personagem, condicionado às
características definidoras e delimitadoras do seu personagem. Por isso, Tom
não viveria no mundo real.
Cecília,
por seu turno, mulher que sofre maus-tratos do seu marido, suportando agressões
físicas e psicológicas (devastadoras para qualquer pessoa). Trabalhadora,
sustenta a casa, em período de grande depressão econômica, com o suor de seu esforço.
Para
Cecília, ir ao cinema, e entrar no mundo de magia e fantasia criado pelos
filmes, era uma forma de fugir à (sua dura) realidade, uma maneira, levada pela
ilusão, de se sentir feliz e confortada.
Gil,
o ator que interpreta Tom no filme, prometeu a Cecília que a levaria com ele
para Hollywood. Contudo, Gil não cumpriu a sua promessa, deixando Cecília em
Nova Jérsei, sem, sequer, despedir-se dela.
No
breve relacionamento entre Cecília e Gil, o ator interpretou um personagem na
vida real, foi um “ator social” contracenando um determinando papel em uma
situação específica de sua convivência social. Gil pretendia que Tom, seu
personagem, retornasse para a tela e, a fim de lograr êxito em seu intuito,
usou Cecília como meio de convencimento de Tom.
Cecília,
ao se dar conta de mais uma desilusão em sua vida, abandonada por Gil, o
escolhido por ela, volta à sala de cinema e o filme termina com Cecília
assistindo a mais uma obra cinematográfica.
Voltar
ao cinema, para Cecília, é retornar ao seu ponto de escape da realidade, é
voltar ao local da fantasia, da ilusão. O cinema é o único local em que Cecília
pode encontrar a felicidade, em contraponto à dureza de seu cotidiano. Ela
busca na fantasia a ficção o conforto que não encontra em sua vida, na
dificuldade do seu mundo real.
Nesta
cena final, mais uma vez, temos a crítica de Woody Allen à indústria cultural.
É que Cecília vai ao cinema no mesmo dia em que fora abandonada por Gil e
assiste ao filme que substituiu, imediatamente, aquele em que Gil interpretava
Tom e que havia dado problema.
Ou
seja, a indústria cultural trata a arte como uma mera mercadoria, onde há,
lembrando os ensinamentos de Pierre Bourdieu, uma autonomização progressiva do
sistema de produção, circulação e consumo dos bens culturais, bens estes já
tratados como meras mercadorias em que a produção dos bens simbólicos
destina-se a um mercado consumidor, que possui demandas específicas.
Cecília,
ávida consumidora de filmes, que busca na magia do cinema o conforto que não
tem em sua vida real, é levada, pela indústria cultural, a consumir mais um
filme, um bem que perde seu valor artístico em prol do seu valor comercial e
visa a atender, exclusivamente, às necessidades da indústria do cinema, da
indústria cultural.
Ficha
técnica:
Título Original: The Purple Rose of Cairo
Gênero: Comédia
Tempo de Duração:
81 minutos
Ano de Lançamento
(EUA): 1985
Estúdio:
Distribuição: Orion
Pictures Corporation
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Produção: Robert
Greenhut
Direção de
Fotografia: Gordon Willis
Desenho de
Produção: Stuart Wurtzel
Direção de Arte: W.
Steven Graham e Edward Pisoni
Figurino: Jeffrey
Kurland
Edição: Susan E.
Morse
Elenco
Mia Farrow (Cecilia)
Jeff Daniels (Tom
Baxter / Gil Sheperd)
Danny Aiello (Monk)
Irving Metzman
(Administrador do cinema)
Stephanie Farrow
(Irmã da Cecilia)
Edward Herrmann
(Henry)
John Wood (Jason)
Deborah Rush (Rita)
Van Johnson (Larry)
Zoe Caldwell
(Condessa)
Eugene J. Anthony
(Arturo)
Karen Akers (Kitty
Haynes)
Annie Joe Edwards
(Delilah)
Milo O'Shea (Padre
Donnelly)
Camille Saviola
(Olga)
Juliana Donald
(Usherette)
Dianne Wiest (Emma)